Janeiro Branco
Alguma coisa aconteceu então na mente de María que a fez entender por que as mulheres do ônibus moviam-se como no fundo de um aquário. Na realidade, estavam apaziguadas com sedantes, e aquele palácio em sombras, com grossos muros de pedra e escadarias geladas, era na realidade um hospital de enfermas mentais.
[…] María olhou-a de viés paralisada de terror.
Pelo amor de Deus, disse. Juro pela minha mãe morta que só vim telefonar.
A única certeza é que seu estado é grave.
O médico fez um gesto sábio. Há condutas que permanecem latentes durante muitos anos, e um dia explodem, disse. Porém, é uma sorte que tenha caído aqui, porque somos especialistas em casos que requerem mão forte. No final, fez uma advertência sobre a estranha obsessão de María pelos telefones. Deixe-a falar, disse.
(Gabriel García Márquez, Doze Contos Peregrinos – “Só vim telefonar”)
A citação, descreve trechos do conto “Só vim telefonar”, escrito por García Márquez. Ele foi anotado em seus cadernos na década de 70 e publicado anos mais tarde. O conto nos apresenta um contato muito próximo com as perturbações que podem ocorrer na mente humana. Quando falamos em humano, estamos aproximando de todos nós.
O mês de Janeiro, foi o escolhido, através da Campanha Janeiro Branco, para chamar a atenção da sociedade, aos cuidados necessários de se dispensar à Saúde Mental.
No Brasil, os números da Organização Mundial de Saúde (OMS), apontam para uma significativa parcela da população que sofre, com depressão, transtornos de ansiedade, uso inadequado de substâncias psicoativas, além dos índices crescentes de suicídio.
Voltando ao conto, e guardadas as devidas diferenças da época em que foi escrito, será que poderíamos transportá-lo para a nossa contemporaneidade?
O quanto podemos estar aprisionados nos próprios muros de pedras e escadarias geladas do nosso palácio de sombras? Adoecidos na nossa vida psíquica, no nosso mundo emocional?
O telefone evoluiu para o smartfone, agora tudo está a um click, mundo virtual e real se confundem, se misturam sem a possibilidade de uma diferenciação clara, evidenciando a mais pura solidão, sem a possibilidade de se estar verdadeiramente só e fazendo bom uso desse tempo.
A sabedoria do médico descrito por Márquez nos traz um alerta. Sua recomendação é: deixe-a falar! Podemos ampliar? Deixe-nos falar!
Vamos tirar proveito da riqueza dos tempos contemporâneos, utilizar os recursos tecnológicos que dispomos para: falar sobre a saúde mental, a dor, o sofrimento, o adoecimento, o acolhimento, o cuidado, o viver. É preciso cuidar de si mesmo e procurar ajuda quando os muros ficam intransponíveis e carregados de pedra. Mão forte, pode significar, firmeza de quem nos escuta e ajuda-nos a atravessar a dor.
Por vezes estamos desencontrados da nossa vida mental, sedados, mesmo sem nenhum sedante. O encontro, pode paralisar de terror, mas pode ser a abertura para o contato com as emoções, com a vida.
A Psicanálise, pode ajudá-lo nessa travessia, transpor os muros da dor, do desejo, do medo, dos pensamentos. Uma abertura para deixar falar, escutar e ser escutado.
MÁRQUEZ, G.G. Doze contos peregrinos. (Eric Nepomuceno, Trad.) 24ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2014.
JANEIRO BRANCO. Release para imprensa brasileira, 2019. Disponível em www.janeirobranco.com.br /Acesso em: 08 de janeiro de 2020.
Foto por Martino Pietropolli de Unsplash