Como preservamos nossa saúde mental em tempos de coronavírus?

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Desde o surgimento do novo coronavírus, da pandemia anunciada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), dos milhões[1] de casos e milhares de mortes pela COVID-19 ao redor do mundo, vivemos uma epidemia do medo, provocada pelas incertezas, pelas angústias com a morte iminente, seja a nossa própria, das pessoas que nos cercam, dos laços que cedem e até mesmo das perdas que o próprio distanciamento e isolamento nos impõe. Além, do medo e da ameaça, que a periculosidade do vírus apresenta, também observamos parte da população negando o risco, diminuindo a gravidade, cedendo aquela parte que receia e ou não pode entrar em contato com o assustador e o que ele desencadeia dentro de nós. Seria o terror ao desamparo que se apresenta, batendo à nossa porta constantemente?

O momento vivido, me remete à lembrança de José Saramago, que em sua obra “Ensaio sobre a Cegueira”, nos apresenta a narrativa da epidemia de uma cegueira branca, que se espalha por uma cidade provocando caos e dor. Uma cegueira que acomete as pessoas tão inesperadamente quanto vai embora e as coloca em isolamento, despertando nelas, o seu lado mais obscuro e também mais solidário.

Como descrito no livro: “Um homem subitamente deixa de ver, vítima de uma cegueira branca, que começa a se espalhar, causando caos na cidade. Mas será que o caos foi causado pela cegueira? Ou o caos já existia, mas só “visto” com a chegada da cegueira? ”

Será que há alguma semelhança com o tempo que vivemos hoje? Tempos de cegueira branca? De guerra contra um vírus invisível que acomete um enorme número de pessoas no nosso planeta? A guerra contra os nossos próprios agentes destrutivos internos?

Os tempos atuais nos apresentam notícias, de pessoas que se abrem a solidariedade e humanidade e outras de onde emerge a agressividade, em sua forma mais violenta.

Estamos atravessando um momento muito complexo e que nos exige novas adaptações, uma condição de continuarmos pensando, criando novas possibilidades, reforçando os laços existentes, mesmo que virtualmente.

Nos mostra ainda a necessidade dos cuidados necessários e recomendados pelas organizações de saúde. Para além dos cuidados práticos, como cuidamos das nossas emoções, pensamentos, vivências e experiências?

Pais, crianças, adultos, idosos, pessoas com co-morbidades, grupos de risco em situação de isolamento? Profissionais de saúde na linha de frente, cuidando das pessoas em tratamento?

Freud, no seu artigo de 1915, “Reflexões para os tempos de guerra e morte”, nos chamou atenção para a ilusão de pensar que o que acontecia em tempos de guerra, não ocorria em tempos de paz. Pode ser que em tempos de guerra, a possibilidade da morte fique ainda mais evidente, bem como a sua presença na vida. Para abrir mão da ilusão, é preciso reconhecer a nossa humanidade, o mistério da vida, o não saber, suportar a desilusão.

Lembrando da obra de Saramago: “Se podes olhar vê. Se podes ver, repara”.

Como seguimos?

Cuidando uns dos outros, nos protegendo dos perigos reais e sobrepujando os que criamos, em detrimento do medo, do terror, que nos é provocado seja pela situação externa, seja pelos conteúdos internos, evocativos e presentes em todos nós. Podemos pensar, é o vírus que nos impõe a dor mental, ou ela já estava lá?

Conversando com as crianças, contando o que é necessário, compreendendo que elas ficam angustiadas, as amparando para atravessar o momento;

Acolhendo os idosos, que nesse momento necessitam de uma presença viva, mesmo que virtual, através dos aparatos tecnológicos que dispomos;

Reforçando os laços fundamentais à nossa vida;

Reconhecendo o que é essencial ao SER. Do que podemos dispor e do que não podemos dispor?

Mantendo a possibilidade de pensar, de questionar, de refletir, mesmo em tempos tão difíceis.

E para finalizar, incluindo o modo próprio de seguir, de encontrar caminhos, de readaptar, de adaptar.

Nesse processo, o trabalho psicanalítico pode ser uma via, há uma disponibilidade e flexibilidade para o contato, mesmo que remoto.

Para quem desejar, o filme baseado na obra de José Saramago e também chamado, Ensaio sobre a Cegueira (2008), com direção de Fernando Meirelles e o elenco estrelado por Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice Braga, dentre outros, é uma boa dica de programação para a quarentena.

FREUD, S. (1996). Reflexões para os tempos de guerra e morte. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 14, pp. 283-312). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915).

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Boletim COE COVID-19 N13. https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/21/BE13—Boletim-do-COE.pdf.  Acesso em: 22 de abril de 2020.

SARAMAGO, J. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Foto por Glen Carrie – Unsplash


[1] Dados internacionais da COVID-19 no mundo até 20/04/2020: 2.423.470 casos confirmados e 166.041 óbitos, conforme Boletim COE COVID-19 N13 do Ministério da Saúde – Semana Epidemiológica (19-24/04), consultado em 22/04/2020.

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